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O CASO DA SOJA E A BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO JURÍDICO. VÍCIOS DE ORIGEM E VÍCIOS DE EXECUÇÃO.

08/05/2015 - Fonte: THIAGO RODOVALHO

No ano de 2012, a 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do E. Min. Luis Felipe Salomão, ao analisar contrato de venda e compra de safra futura de soja e o impacto da ferrugem asiática, houve por bem negar ao produtor a resolução contratual por onerosidade excessiva por ele pretendida, ao argumento de tratar-se de riscos ordinários ao tipo de negócio jurídico, não tendo havido nenhum fato extraordinário a quebrar sua base objetiva (cfr. STJ, 4.ª T., REsp 945.166-GO, rel. Min. Luis Felipe Salomão, v.u., j. 28.2.2012, DJe 12.3.2012). Essa recente decisão nos leva a refletir sobre as circunstâncias fáticas que efetivamente autorizam as pretensões de revisão e/ou resolução contratual.

Na moderna concepção da relação jurídica contratual, os contratantes passam a gozar, em suma, de dois momentos de proteção na vida contratual: (i) proteção contra os vícios na origem; e (ii) proteção contra os vícios na execução.

Os vícios de origem são aqueles que maculam o contrato já em seu nascedouro, como os que viciam o consentimento, como o erro, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão. A proteção contra os vícios de origem também podem ser percebidas na proteção que o ordenamento jurídico confere à parte mais fraca [como ocorre, v.g., na proteção ao consumidor, ou na proteção ao aderente, em contratos de adesão], traçando regras protetivas para tornar mais paritária a celebração de um contrato.

Por sua vez, os denominados vícios de execução consubstanciam-se nas perturbações que ocorrem supervenientemente à celebração do contrato, ou seja, que ocorrem na constância de sua execução e de seu cumprimento. Naturalmente, são os contratos de execução diferida ou de longa duração [contratos de trato sucessivo] aqueles que se sujeitam a essas perturbações.

Nesse contexto, todo contrato celebrado possui duas bases jurídicas: (i) uma subjetiva; (ii) e outra objetiva. A primeira, a base subjetiva do negócio jurídico, interessa ao momento originário do contrato [motivos e vícios da vontade (campo das invalidades do negócio jurídico = vícios da vontade ou sociais do negócio jurídico].[1] Já a segunda, a base objetiva do negócio jurídico, que mais nos interessa para esse estudo, consubstancia-se justamente no complexo de circunstâncias externas ao negócio jurídico, cuja persistência deve ser razoável e objetivamente pressuposta para que se mantenha o escopo do contrato.[2]

O conceito de base objetiva do negócio jurídico traduziu-se em uma evolução das antigas teorias da rebus sic stantibus[3] e da pressuposição, inicialmente delineada com originalidade e brilhantismo por Paul Oertmann[4] e depois aprimorada por Karl Larenz.[5]

Inicialmente, a teoria delineada por Oertmann ainda era presa a uma certa subjetividade (representação mental que uma das partes tinha no momento da conclusão do negócio jurídico e que era conhecida em sua totalidade e não obstaculizada pela outra, ou a comum representação das diversas partes contratantes sobre a existência ou aparição de certas circunstâncias, nas quais se funda a vontade negocial), o que acarretava certa insegurança jurídica.[6]

Em sua obra, Larenz procura dar uma conceituação mais objetiva, evitando os problemas advindos de um conceito que se prendesse a caracteres subjetivos, conceituando a base objetiva do negócio jurídico como sendo “o conjunto de circunstâncias cuja existência ou persistência está devidamente pressuposta no contrato – soubessem-no ou não as partes –, já que, se assim não fosse, não se atingiria a finalidade do contrato, o propósito das partes contratantes e a subsistência do contrato não teria ‘sentido, fim nem objeto’”.[7]

Deste modo, a análise das circunstâncias objetivas que compuseram a base negocial nada tem a ver com imprevisão [situação psicológica ou subjetiva dos contratantes], devendo ser aferida objetivamente. Era justamente o elemento subjetivo que fazia com que as teorias da imprevisão ou da pressuposição não pudessem responder adequadamente os problemas práticos que se surgiam no curso do cumprimento dos contratos de execução diferida ou de longa duração.

Essa concepção objetivada da perturbação ao cumprimento dos contratos de execução diferida ou de longa duração [alteração da base do negócio jurídico] é consentânea com o recente BGB § 313, cuja introdução se deu por meio da Lei de Modernização do Direito das Obrigações [Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts] de 2000.[8]

A necessidade de modificação ou adequação dos contratos de execução diferida ou de longa duração é, assim, a consequência jurídica do desaparecimento das circunstâncias (objetivas) sobre as quais o contrato foi edificado.[9]

É evidente que a celebração de todo e qualquer contrato traz, em si, a assunção de riscos, de tal sorte que se pode dizer que todo contrato tem em si uma álea (um campo de incerteza), de modo que as perturbações que ocorrerem dentro dessa álea do contrato, álea normal do contrato, na feliz expressão do CC ita. 1467, não ensejam a revisão [renegociação ou judicialmente] ou a resolução do contrato [trata-se de uma onerosità tollerabile].[10]

Sempre haverá bons e maus contratos celebrados [dentro da legítima negociação entre as partes (sem que ocorra qualquer dos vícios da vontade ou sociais que podem macular o negócio jurídico)], bem como perturbações ao contrato que não dão azo à revisão do contrato ou à resolução do contrato, ou seja, perturbações que se inserem dentro da álea normal do contrato. Somente em se tratando de perturbação que sobeje a álea normal do contrato, a situação jurídica deve ser enfrentada de maneira diferente, impondo-se-lhe a revisão do contrato [quer por meio de renegociação entre as partes, quer por meio de revisão judicial] ou, mesmo, caso não seja possível a conservação do contrato, que se proceda à sua resolução.

A álea normal do contrato constitui, assim, um critério a ser observado quando se analisa, in concreto, a necessidade de adequação (adeguamento), revisão ou resolução de contratos de longa duração.[11]

 


[1] Karl Larenz. Base del negocio jurídico y cumplimiento del contrato, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956, Cap. 1.º, IV, p. 38.

[2] Giorgio Cian e Alberto Trabucchi. Commentario breve al códice civile, 9.ª ed. (a cura di Giorgio Cian), Padova: CEDAM, 2009, coment. VIII CC ita. 1353, p. 1420.

[3] Que remonta ao direito romano. Sobre a cláusula rebus sic stantibus, v., entre outros, José Maria Othon Sidou. A revisão judicial dos contratos e outras figuras jurídicas: a cláusula rebus sic stantibus; dos efeitos da fiança; empresa individual de responsabilidade limitada, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, pp. 4/23.

[4] A sua teoria sobre a base objetiva do negócio jurídico é brevemente referida em sua obra traduzida para o espanhol: Paul Oertmann. Introducción al derecho civil, Barcelona: Labor, 1933, § 55, pp. 302/305.

[5] Karl Larenz. Base del negocio jurídico y cumplimiento del contrato, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956, passim.

[6] Karl Larenz. Base del negocio jurídico, cit., Cap. 1.º, II, pp. 20 et seq.

[7] Karl Larenz. Base del negocio jurídico, cit., Cap. 1.º, IV, p. 37.

[8] V. António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Da modernização do direito civil, v. I (Aspectos gerais), Coimbra: Almedina, 2004, § 6.º, pp. 97/116.

[9] Cfr. Karl Larenz. Base del negocio jurídico, cit., Cap. 4.º, p. 171 et seq.

[10] Gerardo Marasco. La rinegoziazione, cit., p. 4; e Francesco Macario. Adeguamento e rinegoziazione nei contratti a lungo termine, Napoli: Jovene, 1996, p. 275.

[11] Francesco Macario. Adeguamento, cit., p. 240.

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