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Cybercapacitismo: Direitos e desafios jurídicos na proteção da dignidade de pessoas autistas

18/06/2025 - Fonte: ESA/OABSP

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Cybercapacitismo: Direitos e desafios jurídicos na proteção da dignidade de pessoas autistas

Marcelo Ataide Garcia é pai de dois jovens autistas. Advogado com mais de 28 anos de atuação nas áreas Cível, Trabalhista, Tributária e em Direitos das Pessoas com Deficiência. É Presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 132ª Subseção da OAB/SP (Praia Grande) e foi presidente da mesma comissão entre 2016 e 2021. Atualmente, é Conselheiro Nacional da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas – Autistas Brasil. Sócio do escritório MAG Advocacia.

Arthur Ataide Ferreira Garcia é autista, graduando em medicina pela Unimes, Vice-Presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas – Autistas Brasil, ativista político pela neurodiversidade, primeiro cidadão autista a criar uma Lei Estadual no país.

Ergon Cugler é autista, graduado e pós-graduado pela USP, mestre em administração pública pela FGV, com especialização pela Universitat de Barcelona. Pesquisador DTI/CNPq do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/FGV).

O capacitismo não se limita ao mundo físico. Ele não mora apenas nas ruas, nos ambientes de trabalho ou nas relações interpessoais presenciais. Ele atravessa fronteiras e se reinventa nas redes sociais, nas plataformas de conteúdo e nos ambientes digitais, onde assume formas que combinam violência simbólica, exposição pública e humilhação recreativa. Mais do que uma mera reprodução do capacitismo estrutural, o ambiente digital se tornou um espaço onde a discriminação contra pessoas autistas não só é naturalizada, como também monetizada.

O fenômeno do capacitismo recreativo cresce na mesma proporção em que as plataformas se recusam a agir de forma efetiva contra ele. Basta uma busca rápida nas redes para encontrar perfis, vídeos e conteúdos inteiros dedicados a transformar características da neurodivergência em piada, deboche ou espetáculo. Gestos, formas de falar, modos de se expressar, interesses específicos e padrões comportamentais típicos do autismo são frequentemente convertidos em memes, sátiras e conteúdos que viralizam à custa da dignidade de pessoas autistas.

Essa lógica não é acidental. Ela faz parte de um modelo de negócio que premia engajamento a qualquer custo. As plataformas digitais lucram com o fluxo constante de interações, comentários, compartilhamentos e visualizações, independentemente de esses conteúdos estarem ancorados em discursos de ódio, humilhação pública ou violência simbólica. É um ciclo perverso: quanto mais polêmico, mais alcance. Quanto mais violento, mais audiência. E quanto mais audiência, mais monetização, tanto para os criadores desses conteúdos quanto para as próprias plataformas.

O problema não é apenas a existência de indivíduos que reproduzem práticas capacitistas, mas sim um ecossistema inteiro que permite, estimula e lucra com isso. Vídeos que zombam de traços da comunicação autista, lives que expõem pessoas neurodivergentes ao ridículo, cortes que transformam trechos de falas ou comportamentos em alvo de piada. Tudo isso circula livremente, muitas vezes sem qualquer intervenção das plataformas. E quando há denúncia, a resposta costuma ser vaga, protocolar, e invariavelmente arquivada com a justificativa de que “não há violação das diretrizes da comunidade”.

Esse tipo de violência não é menor nem simbólica. Ele tem efeitos concretos sobre a saúde mental, a segurança e a participação social das pessoas autistas. O riso, aqui, não é apenas uma expressão de humor, mas uma ferramenta de desumanização. Trata-se de uma prática que reforça estigmas, aprofunda o isolamento e produz sofrimento real.

O ordenamento jurídico brasileiro, embora avance em alguns marcos relevantes, como o 1.) Marco Civil da Internet; 2.) a Lei Geral de Proteção de Dados; e 3.) a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, ainda não está preparado para enfrentar essa economia do ódio, onde o capacitismo vira mercadoria. As legislações existentes oferecem instrumentos, mas sua aplicação ainda esbarra na falta de compreensão do sistema de justiça sobre como essas violências se materializam no ambiente digital.

Não se trata apenas de proteger dados ou garantir acessibilidade técnica. Trata-se de reconhecer que há uma violação direta ao princípio da dignidade da pessoa humana quando plataformas permitem e lucram com a propagação de conteúdos que ridicularizam e desumanizam pessoas autistas. E essa violação não pode ser naturalizada.

É preciso reconhecer que a omissão das plataformas as transforma em agentes ativos desse processo. Elas não são apenas intermediárias neutras; são beneficiárias diretas de uma lógica que transforma o sofrimento alheio em conteúdo rentável. A responsabilização civil, administrativa e, em certos casos, até criminal, precisa passar a considerar não apenas os autores dos conteúdos, mas também os provedores que se beneficiam financeiramente dessa lógica.

Isso exige, portanto, uma mudança de paradigma no próprio sistema jurídico. O combate ao que podemos chamar de cybercapacitismo, especialmente na sua face recreativa e mercantilizada, precisa ser entendido como uma questão de direitos humanos. Significa garantir que as plataformas tenham obrigações claras e inegociáveis em relação à moderação de conteúdos, à reparação de danos e à construção de ambientes digitais seguros para pessoas autistas e para todas as pessoas com deficiência.

Mais do que isso, é urgente que se reconheça que o direito de existir no ambiente digital não pode estar condicionado ao silêncio, à conformidade ou à invisibilidade das pessoas neurodivergentes. Não é razoável e nem aceitável que o preço da participação no espaço público digital seja a submissão ao escárnio, ao deboche e à ridicularização sistemática.

Com frequência essa violência capacitista é promovida pela própria família. Infelizmente, temos nos deparado com a exploração frequente de vulnerabilidades de crianças autistas na internet. Pais publicam vídeos de seus filhos, em momentos de crise em troca de likes, expondo o dia a dia destas crianças para milhares de estranhos, sem nenhum filtro. O desejo pelos holofotes vem antes da preocupação com o cuidado da criança autista, ela perde o direito a intimidade, privacidade, vontade própria e a própria infância, deixa de ser criança, para ser tão somente instrumento de enriquecimento dos pais.

Se no passado pessoas com deficiência eram excluídas da sociedade e só lhes restavam espaços para serem vistas como piadas, ou aberrações dignas de pena, o bobo da corte do rei a aberração de circo, a vida da pessoa com deficiência só não era apagada quando podia ser espetacularizada. Lutamos muito para superar isso, para que pessoas com deficiência tivessem paridade de direitos, como educação, trabalho e saúde.

Porém, nos dias de hoje, com o cybercapacitismo vigente nas redes sociais, estamos a beira de um verdadeiro retrocesso, aos direitos que tantos lutaram para conquistar. O algoritmo recompensa quando famílias violam a privacidade de seus filhos com deficiência, quando alguém expõe suas dificuldades como forma de espetáculo, ou quando suas condições são ridicularizadas por quem acha que existe humor na intolerância. Em uma sociedade pautada pelo que é influente nas redes sociais, a pessoa com deficiência volta a somente ter espaço se for como “aberração exótica”, sujeito de pena ou história de superação para alimentar fantasias de salvadorismo de pessoas sem deficiência, aquele que era sujeito de direito volta ao status de bobo da corte ou peça de exposição de circo.

A cautela contra mecanismos de exclusão é necessária. Temos que enfrentar a banalização do cybercapacitismo, ora disfarçada de “piadas”, ora de discurso de conscientização. A desumanização de corpos e mentes diversas têm que ser combatida. Enquanto as plataformas enriquecerem com a desumanização de autistas e pessoas com deficiência como um todo, o direito precisará avançar para coibir essa economia do ódio e garantir que o ambiente digital seja seguro e inclusivo para todos.

Há que se destacar, que na barbárie que foi o Terceiro Reich, o então ministro Joseph Goebbels, empreendeu uma campanha de publicidade a fim de desumanizar judeus, pessoas com deficiência, ciganos, entre outros. Pessoas com deficiência eram retratadas como “fardos para a sociedade”, associadas à degeneração racial e vistas como obstáculos ao progresso nacional.

Hoje o cybercapacitismo monetizado nas redes muitas vezes repete essa mesma prática: pessoas com deficiência são vistas como “peso”, “inválidas”, ou “falhas da natureza”, frequentemente disfarçado de “humor”, “opinião” ou “liberdade de expressão”.

Com efeito, a comparação entre as campanhas de Goebbels e o cybercapacitismo nas redes sociais revela um padrão perturbador: a desumanização de grupos marginalizados persiste, apenas adaptada aos novos tempos. Se no passado o regime nazista usava a mídia controlada para disseminar ódio e justificar exclusão, hoje as plataformas digitais por meio de algoritmos, moderação negligente e a cultura do engajamento a qualquer custo perpetuam violência contra pessoas com deficiência. A desumanização disfarçada de “humor”, "liberdade de expressão" ou até mesmo “conscientização” é usada para validar opressões.

Por fim, é preciso dizer sem rodeios: a piada não é neutra. E quando ela se faz à custa da dignidade de pessoas autistas, não é apenas humor, é violência. E como toda violência, precisa ser enfrentada não apenas no campo ético, mas também no campo jurídico, político e social. O desafio está posto. O tempo da omissão precisa, urgentemente, acabar, ressaltando que nunca a força das plataformas deve se sobrepor a força do Direito, construindo assim uma sociedade mais justa e democrática, onde a lei e o respeito sejam os pilares da vida em comum.

 

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